Morava em uma das gavetas do meu guarda-roupa, até a semana passada, uma meia de lã verde que pertenceu ao avô de uma ex- namorada. A meia, de tão velha, estava transparente nos calcanhares. O avô, que eu não conheci, morreu há mais de uma década. E a ex-namorada, faz tempo, é feliz com outro homem.
Mesmo assim, a meia seguia comigo.
De vez em quando, nas noites de inverno, ela saia da gaveta e me ajudava a dormir quentinho – e esse era a desculpa oficial para a sua permanência duradoura na minha casa e na minha vida.
Mas seria apenas isso? Não.
Como tantas outras coisas espalhadas por gavetas, paredes, armários, cabides, penteadeiras e até na porta da geladeira da minha casa, a meia de lã verde era um pedaço de memória. Estava lá para materializar um pedaço gostoso do passado e tentar impedir que ele sumisse.
Sei que há pessoas que não se interessam muito pelo que passou. Gente que vira as costas rapidamente para ontem e com rapidez ainda maior começa de novo, amanhã. Gente desapegada, que sai da vida dos outros deixando tudo para trás: móveis, afetos, objetos, fotografias, lembranças, meias...
Eu não.
A minha casa é o museu da minha vida. Quem passou por uma vai deixando sinais no outro. Fotos, cartas, entradas de cinema, meias...
Outro dia, procurando um documento, dei de cara com uma caixa azul cheia de cartas e bilhetes. Havia muita coisa antiga ali, de vários tamanhos e densidades. Fiquei bestificado e comovido. Mulheres apaixonadas ou desiludidas escrevem lindamente. Quando o amor acabou, quando aquela dor antiga já não faz mais sentido, o sentimento registrado em letra trêmula ou determinada ainda vibra – e nos transmite a sensação, deliciosa, de haver vivido. E ter estado em boa companhia.
Mas nem todo mundo entende assim.
Às vezes, uma mulher entra na vida de um homem determinada a apagar o passado. Não basta a ela um lugar no presente. Ela precisa limpar, com a energia e detergente, a memória do que passou. Sai farejando pelos cantos os restos deixados pela outra. De quem é essa camiseta de mulher? Por que você guarda esse guarda-chuva colorido? O que tem de especial nesses cristais?
Sumir com os sinais do passado na vida do outro, porém, é claramente uma tarefa impossível.
Primeiro, por que você não sabe contra o quê está brigando. A inimiga pode estar em toda parte. A cueca que seu namorado usa, por exemplo, por ter sido um presente da anterior. Ou o lençol no qual vocês dormem felizes. A camiseta de corrida que ele adora? Pois é... Aquele vaso bonito da sala, sabe qual? Foi ela quem escolheu numa viagem. A gravata bonita que ele usou no casamento? É do irmão dela. Ele nunca devolveu. Aliás, aquela camiseta que ela empresta quando você dorme na casa dela: grande, né?
Outra razão pela qual o passado é inexpugnável: aquilo que está no guarda-roupa ou na cristaleira é apenas a parte visível da memória e dos afetos. O que vai por dentro, muito mais importante, é invisível ao olhar. Não dá para brigar com as lembranças que o seu homem carrega dentro dele. Se ele escuta uma música no rádio do carro e sorri, o que você diz? Se vocês viajam a uma cidade em que ele já esteve, o que você sente? Se ele para, absorto, relendo a dedicatória de um livro, como você faz?
Ao contrário do presente, o passado não pode ser destruído ou alterado. Se tomar formas inocentes no presente – um quadro na parede, um comentário passageiro – isso é positivo. Demonstra uma saudável conexão com a própria biografia. Há algo de errado com as pessoas que encobrem seu passado como quem pinta a parede uma vez por ano. Por que é tão difícil confrontá-lo ou tão necessário evitá-lo? Melhor que ele exista e esteja em paz.
Tenho um amigo que, antes de se casar, deixou a futura mulher queimar o seu colchão de solteiro. Era um exorcismo bem-humorado e carinhoso, mas o diabo, mesmo assim, voltou. Depois de um bom tempo, mas voltou. Uma legião deles, na verdade.
Se as leitoras e leitores me permitissem um palpite, eu deixaria em paz as lembranças da outra. Ou do outro.
O que há demais numa camiseta cor de rosa que vive quietinha no fundo de uma gaveta? Nada. Aquele capacete tamanho G que dorme há anos embaixo da cama – qual o problema, rapaz? O motoqueiro não está mais lá. A galeria de rostos na moldura da Tok-Stok não sorri para você, mas isso é só um detalhe. Seu namorado está ótimo nas fotos. Há restos de decoração da outra pela casa toda? Nenhum problema: ela tinha um gosto divertido e, de qualquer maneira, o fulano gosta da decoração e da lembrança, não necessariamente da fulana.
Se isso ainda não bastar para você encarar o apego ao passado do seu homem com alguma tolerância, sugiro um argumento que eu uso comigo e que tem me ajudado a evitar o ciúme do pretérito: o efeito Orloff.
“Eu sou esse cara amanhã”.
Um dia, se esta relação acabar, eu não quero ser demonizado, exorcizado e depois esquecido como um sonho ruim. Não gostaria que as minhas fotos fossem apagadas do hard-disk (ok, tirar do Facebook eu entendo...). Não queria que as roupas que eu dei fossem jogadas fora, que as páginas de dedicatória dos livros fossem arrancadas, que a luminária que me deu tanto trabalho instalar na casa dela fosse trocada por outra, mais feia, apenas para me tirar do quarto.
Mas eu sou apegado – e, à minha própria maneira, realista. Prefiro ver uma meia na gaveta a não ver absolutamente nada. As meias eu sei que um dia serão jogadas fora. O nada eu sei que não existe.
(Ivan Martins)
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